quarta-feira, 5 de novembro de 2008

encontro sobre teatro e ritual - dia 2

O segundo dia de conversas, 08/09, foi também o primeiro em que recebemos no TUSP convidados de fora da Cia. Livre. O Prof. Dr. Cassiano Quidici (da PUC – SP e da Unicamp) e a Prof. Dra. Christine Greiner (professora de Comunicação e Semiótica e pesquisadora das tradições orientais) foram provocados a discutir as pontes entre teatro, performance, dança e ritual, a partir da perspectiva da apropriação de formas teatrais convencionadas ligadas à tradição do teatro (o japonês tradicional e o teatro balinês) pelo teatro contemporâneo ocidental e oriental.

Apesar de muito ampla, a questão posicionava o problema da tradução entre os dois campos, das artes performativas (o teatro aí incluído) e do ritual, no seu sentido “usual”, ou seja, não relacionado às formas de teatro.




Cassiano iniciou sua fala questionando a razão que impulsionam o desejo de relacionar a prática teatral aos universos rituais. Para ele, está “embutida” nessa preocupação a vontade de explorar as tensões entre os dois universos; gerar questinamentos produtivos, sobre a linguagem teatral, o sentido do fazer teatral e o lugar do teatro na nossa sociedade.


Artaud (num viés nietzchiano) postulou o nascimento do teatro no Ocidente como negação do rito (ou, o “recalcamento” do ritual). Na performance contemporânea, esse “algo recalcado” torna a pedir expressão. Essa relação, contudo, necessita um procedimento de tradução. O ritual, a rigor, está fora das categoria estética (se definirmos essa categoria a partir do pensamento ocidental moderno, do século XVIII; onde o “estético” está relacionado ao prazer desinteressado e ao universo do conhecimento sensível). Nos contextos tradicionais, os elementos estéticos (música, dança, etc) estão presentes, porém com finalidades ligadas à vida prática, com vistas a uma “eficácia” particular.

Cassiano definiu essa finalidade e eficácia do ritual em alguns elementos;

a) sustentação do “estado humano”.

As fronteiras entre o estado humano e os outros estados são frágeis e precisam de um “investimento” da cultura para sua manutenção. As intervenções da cultura ocorrem nos corpos dos indivíduos (por exemplo, os ritos de passagem , que marcam momentos significativos da vida individual, numa coletividade).

Esse tema é recorrente em religiões orientais (o budismo e o xintoísmo, por exemplo), que destacam a sua importância extrema. Apenas o estado humano permite o despertar; ainda mais importante do que o estado divino. Essa valorização do humano é diversa do modelo humanista europeu (mais racionalista).

b) diferenciação de “tipos especiais” de pessoas.

Os ritos de iniciação xamânica e outros ritos semelhantes são dirigidos a alguns “indivíduos especiais”, que fazem o trânsito entre os vários mundos descritos nas cosmologias (Eduardo Viveiros de Castro descreve o xamã como o “diplomata do cosmos”).

Depois dessa separação, Cassiano iniciou algumas formulações sobre cruzamentos entre teatro e ritual. Esses cruzamentos são espécies de “apropriações”, “traduções” entre os dois campos.

Numa grande elipse, ele comparou o xamã, que não pertence a nenhum lugar e por isso é “diferenciado”, ao ator do Nô japonês. Freud, na teoria psicanalítica (Luto e Melancolia), estuda a disjuncão e como ela deve ser feita. Já nos territórios tradicionais, o invisível não é descrito em termos psicológicos, mas cosmológicos. O mesmo procedimento está presente no teatro Nô – o personagem shitê (aquele que age) é um fantasma ou um deus, preso em algum lugar ou estado, enredado por questões “passionais”. O waki (o que testemunha) é um monge errante, um pescador ou outro personagem que não está fixado em nenhum território. Ele dá espaço para a expressão do shitê. A compreensão do teatro Nô extrapola a apreciação estética.

Outro cruzamento: Artaud, que teve uma intuição aguda sobre a centralidade do ritual para a necessidade do teatro. O teatro não foi feito para descrever o homem, mas para o constituir com um “ser de homem”, além de ajudá-lo a superar sua fragilidade e sua temporalidade.

A antropologia teatral também oferece sua leitura particular do ritual. A sua leitura, contudo, é um pouco mais “técnica”, a fim de escapar de interpretações “ecumênicas” do fenômeno. Barba busca fugir da imitação de formas, que apela para o exótico. Para Cassiano, entretanto, o teatro antropológico de Barba está ainda dentro dos limites da estética, sem atravessar fronteiras (por exemplo, restringe-se à discussões tais como a “presença do ator”). Grotowski, por outro lado, vai além disso (vide sua palestra de 1969). A formulação da “arte como veículo” é radical nesse sentido e as questões por ele levantadas são vivas e merecem novos debates.

A performance revê o tema do ritual, efetuando deslocamentos semelhantes dos procedimentos e finalidades, como é o caso, por exemplo, da proposta dos acionistas de Viena. É atribuído ao ritual algumas qualidades, que são do interesse desses artistas, as quais denotam uma leitura, muitas vezes, europeizada: o ritual é visto como o lugar da celebração de instintos agressivos e “além da civilização” (enquanto que no ritual esse ponto é, certamente, mais complexo). A performance torna pública uma experiência que é pessoal do neófito e, por vezes, vedada a outros testemunhos. Cassiano questiona se seria possível entender a experiência corporal da performance como uma “revisão” dos processos de dor presentes no rito. Tomando a obra de Marina Abramovic 7 Easy Pieces, poderíamos considerar seu trabalho uma “melodramatização”, uma espetacularização, onde os aspectos sacrificial e iniciático são (conscientemente ou inconscientemente) manipulados?





Christine Greiner optou por iniciar a conversa com uma comparação de formas de convivência entre mortos e vivos e entre realidade e ficção em várias manifestações da cultura japonesa. Segundo ela, esse trânsito é facilitado, porque no Japão a noção da relação estreita entre corpo e ambiente é muito presente: o ambiente não é apenas o local onde você está, mas também o universo simbólico criado nesse lugar. As possibilidades de metamorfoses do corpo, em virtude dessa característica da cultura japonesa, são amplificadas e incorporadas no fazer artístico e na recepção das obras (aceitas como “possíveis”).

Todo ritual implica numa metamorfose do corpo, que pode ser tão sutil, que não é visível. Porém, mesmo quando não é visível, essa metamorfose pode ser comunicação. Esse seria um material interessante que o cinema, o teatro e a dança japoneses nos oferecem, no que concerne à relação entre teatro e ritual.

Seu primeiro exemplo foi o teatro Nô, que tem início quando o limite da realidade já foi rompido. Alguns itens exemplificam essa condição de “superação/ rompimento com o real”: o shitê é uma aparição; ele nunca é o que “aparenta ser”; o tempo do Nô é metereológico e não cronológico (existem Nôs de vernao, outono, inverno, etc). Outro exemplo: o filme de Kenzy Mizoguchi, Ugetsu, traduzido em protuguês como Contos da Lua Vaga. No filme, a mulher aparece como uma personagem do Nô, sem que as outras personagens demonstrem qualquer estranhamento quanto a essa presença “diferenciada”: não existe interrupção de linguagem. Também no filme de Ozu, Pai e Filha, as metamorfoses do corpo estão presentes, com muitas possibilidades (inclusive, numa cena semelhante à troca de máscaras, que as personagens do Nô fazem na sala do espelho).

O butoh também propõe a convivência entre mortos e vivos. Hijikata coloca o corpo do bailarino como o corpo morto. A máxima que define o butoh seria “um cadáver que tenta levantar-se, mas não consegue sustentar as próprias pernas” – vide a História da Varíola, criada com inspiração num quadro de Bacon).

Os exemplos são vários; uma série de experiências, nos anos 60 e 70, partiram da mesma contraposição. Christine lembra que alguns grupos (como o Gutay, “descoberto” por Michelle Papier) tornaram-se muito conhecidos por aqui; outros (como o Monoha, cujo primeiro livro, da década de 60, só foi traduzido para o “ocidente” em 2008) esbarraram em dificuldades de tradução.

O impasse da tradução intercultural não é uma questão que envolve apenas a transformação de um código linguístico em outro, mas aspectos que vão desde interesses do mercado da arte (quem escolhe o que deve ser traduzido?), até problemas de perspectivas: a dificuldade maior reside na tradução do pensamento que a linguagem aporta; a tentativa usual costuma ser traduzir o objeto a partir das experiências e cronologias da história da arte ocidental e a tomar uma forma artística como um “resultado”, sem a apreciação do seu processo criativo; o que reduz a obra a uma “descoberta estética”. Iamero Mai Rimé, último livro dos cadernos de criação de Hijikata, não é um caderno pedagógico, num sentido estrito, mas abre um universo de significados para a experiência de criação de Hijikata no butoh. Como poderiam ser traduzidos?

Um exemplo paradigmático desse impasse está na noção de espaço-tempo da cultura japonesa, o “Ma”. Objeto de fetiche dos pesquisadores ocidentais, o “Ma” não é um intervalo, mas um processo de comunicação. O “Ma” é um jeito muito particular de se pensar a metamorfose do corpo, porque considera a “invisibilidade” como parte da comunicação: o aparentemente parado é também mediação.

A questão não está restrita à “filosofia”. Quando desaparece do teatro e da dança, reaparece no espaço “otaku”; ressurge na cultura de massa, como é o caso dos animês (vide as publicações da revista Garo)

Christine nos pergunta se esse hermetismo, que esses “textos da cultura” japonesa possuem, torna a nós todos, “leitores ocidentais”, usurpadores? O que seria necessário para empreendermos a tarefa de tradução de maneira “eficiente”? Se nós seremos sempre estrangeiros, onde podemos encontrar uma “empatia” de questões?

A platéia manifestou-se através de uma série de perguntas, que motivaram novas colocações. Uma pergunta foi da relação entre performance e tempo: como constituir uma temporalidade não linear e se o ritual pode oferecer soluções para a questão.






Cassiano citou Turner, para ressaltar que um dos sentidos da palavra RITO é RITMO. Os ritos marcam os “tempos fortes” da experiência, que são os tempos perigosos. O perigo desperta a atenção sobre o presente (rompendo as preocupações com o passado e o futuro, a experiência do aqui/agora é intensificada). Artaud já tratava do risco e do perigo, argumentando que o teatro precisa mobilizar forças, para ampliar a atenção e a percepção.

François Dolto, comentando a experiência do bebê, fala da sua incapacidade de adiar as compensações. O tempo do bebê é dado pelas suas necessidades corporais; a respiração figura como um sentido de ritmo primário, não-linear e com fundamento corporal.

Para Christine, o tempo no corpo será sempre plural (o devaneio é exemplar dessa pluralidade). O tempo da cronologia é, portanto, um artefato, uma ficção. Prigogine, em Nascimento do Tempo, trata da irreversibilidade da flecha do tempo. Pela platéia, ficamos sabendo sobre o cinema de Maia Dery, que declara produzir sua arte numa forma ritualística, a partir da construção de figuras numa perspectiva liminal (rompendo, por exemplo, com as divisões de gênero, apresentando o andrógino) e empregando a simultaneidade de tempos (onde cai por terra a noção de “causa-efeito”).

Outra questão posicionou uma dúvida sobre a presença do público, diferencindo o teatro do ritual: haveria outra saída para essa presença, se não tornar o evento um “fenômeno estético” partilhado?

Cassiano comentou que, para Grotowski, o espectador deixa de ser importante, a medida em que ele mergulha no universo ritual. Grotowski considera as pessoas como “torres de babel”, o que não existe no contexto ritual. A estética, portanto, precisa ser colocada em questão, quando essa aproximação de campos torna-se central. O ator, por exemplo, pode flutuar entre posicionar-se na criação “mais de fora”, ou de maneira mais “existencial”: ele será convidado a fazer essa escolha. Para a apreensão de um “corpo sem orgãos”, cumpre abraçar uma experiência menos codificada, que tem semelhanças com o reconhecimento de um corpo no espaço infinito (para Christine, essa seria uma “entrada num fluxo perceptivo”). Artaud menciona uma “caixa com fundo falso, de onde não param de sair coisas”. Contudo, Cassiano ressalta, pensar o ritual no teatro como um rompimento da separação entre palco e platéia é outra deformidade, fruto da nossa leitura pré-concebida desse espelhamento.





A “tensão” pareceu traduzir a relação entre teatro e ritual da melhor maneira nesse dia. Para Christine, esse tensionamento está claro na definição de Schechner para a performatividade, como uma “restauração de um comportamento”, não mais algum estado “originário”, mas um jogo diferenciado, proposto pelo “como se”. Como espectadora, já testemunhou essa tensão nos espetáculos de butoh, quando vistos muito de perto (Komurobuchi) e na dança de Lia Rodrigues, em Encarnado. Para Cassiano, o sonho “impossível” de Artaud ganha potência quando aponta para uma experiência que expande as fronteiras da representação. Ele já viu algo semelhante, em Artaud, de Rubens Correa, na Trilogia Tebana, de Andrei Serban e da apresentação dos Xavantes, há anos atrás, numa noite fria no Parque da Independência, em São Paulo.


(texto de Lúcia Walker Romano e fotos de Nelson Click Kao)

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